sexta-feira, 25 de junho de 2010

Protopoema - José Saramago


Do novelo emaranhado da memória, da escuridão dos
nós cegos, puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto, de medo que se desfaça entre os
dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas, e de
repente não sei se as águas nascem de mim, ou para
mim fluem.
Continuo a puxar, não já memória apenas, mas o
próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos, e sou também os
barcos e o céu que os cobre e os altos choupos que
vagarosamente deslizam sobre a película luminosa
dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue e oscilam entre duas
águas como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim, desce como um lento e
firme pulsar do coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo
acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém, o meu
corpo despido brilha debaixo do sol, entre o
esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas
da memória e o vulto subitamente anunciado do
futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei e vai pousar
calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul e que
as aves digam nos ramos por que são altos os
choupos e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem,
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas
verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra
viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se
juntarem às mãos.
Depois saberei tudo.

(in PROVAVELMENTE ALEGRIA, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1985, 3ª Edição)

8 comentários:

  1. Precioso texto y merecido homenaje al maestro Saramago, hombre justo, comprometido y solidario donde los haya. Un saludo.

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  2. Paco,

    Como dizes: O Mestre.

    (a sua vertente poética é a que mais me agrada!)

    Bjs

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  3. O dia está lindo, azul celeste, a Sé de Leiria, aqui mesmo ao meu lado, do outro lado do Largo.
    Tenho que trabalhar, continuar a trabalhar, até quando? Não eram estes os planos que tracei na minha meia-idade, já lá irão à volta de 40 anos.
    Bem, mas acontece que hoje me lembrei de vir dar uma olhadela a este seu blogue, à boleia da D. Alda. É que temo-nos por lá encontrado com alguma frequência e já ando há que tempos para a vir aqui cumprimentar.

    Claro, este texto de Saramago, que nos fez o favor de colocar à nossa disposição é simplesmente fantástico.
    Já sinto falta do "estar cá" do grande José Saramago.
    Um abraço
    António

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  4. António, (se é que assim o posso tratar)

    … Na verdade, eu já tenho ido, algumas vezes, coscuvilhar o “Dispersamente”…


    Obrigada por se ter dado à canseira de me vir cumprimentar, é muito bem-vindo! Bem-haja!

    Pois, percebo a sua indignação: quem já trabalhou - E DESCONTOU – 40 ou mais anos, tinha mesmo que estar tranquilo a apreciar as belas paisagens e o fantástico sol de que fala!

    Tudo o que façamos será pouco para homenagear o grande Mestre da Literatura…


    Volte sempre!

    (eu retribuirei a visita, com muito gosto)

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